(Publicado também pelo Jornal do Brasil e O Estado do Paraná)
Democracia nunca foi palavra de ordem na Rússia. Pelo contrário, o país sempre inspirou entre vizinhos e aliados modelos de governo que se distanciavam – e muito! – da representação direta.
Os proto-ditadores Alexander Lukashenko (Bielorrússia) e Viktor Yanukovych (Ucrânia) que o digam. Enquanto o primeiro promovia leis para banir manifestações populares, o segundo processou e deu ordem de prisão para Yulia Tymoshenko, sua antecessora na presidência. Tudo isso com o apoio irrestrito dos líderes russos Dmitry Medvedev e Vladmir Putin.
Tal apoio a regimes conturbados não parou por aí. Nos recentes debates do Conselho de Segurança da ONU se tornou comum ver diplomatas russos discursando em defesa de ditadores como Muammar Gaddafi e Bashar al-Assad.
A postura, apesar de despertar a aversão dos ocidentais, não é controversa. Basicamente, defendem externamente uma cultura global que os permita adotar posturas anti-democráticas sem se preocupar com qualquer represália da comunidade internacional.
Estive na Rússia recentemente e senti na pele os efeitos da transição apressada rumo ao capitalismo que, coordenada por Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin, consolidou a conturbada realidade política desta mega-nação.
Em linhas gerais, as reformas liberais implementadas pelo comunista Gorbachev abriram espaço para que Yeltsin, seu opositor, acabasse com a União Soviética e promovesse o governo populista que liderou a então criada Federação Russa por quase uma década. O término de sua gestão ocorreu no último dia 2000, quando, no tradicional discurso anual do presidente, dispensou eleições e indicou seu primeiro-ministro para gerir a nação.
Além de manter seu grupo no poder, Boris Yeltsin criou ali um dos maiores mitos da história política do país: o ex-agente da KGB, Vladmir Putin.
O novo presidente consolidou seu partido, Yedínaya Rossíya, utilizou a alta dos preços no petróleo – maior commodity russa – para garantir estabilidade à conturbada economia nacional, cegou a intelligentsia e acabou sendo o responsável indireto por uma das cenas mais chocantes que já presenciei.
Em minha viagem, ainda em 2010, participei de um debate entre jovens liberais e membros do partido de Putin onde vi um estudante pró-governo de apenas 19 anos afirmar que seu partido realmente cometia fraudes eleitorais mas, no entanto, o fazia com uma boa intenção: facilitar a contagem de votos uma vez que todos já sabiam quem iria vencer. Ao comentar a falta de liberdade de expressão, o jovem prosseguiu com seu show de horrores: “É verdade que existe censura nas televisões e jornais. Mas isto não é um problema. Quem desejar mais informações ainda pode acessar a internet”.
Tal discurso retrata a exata realidade em que o país se encontra hoje. Após eleições fraudulentas para o legislativo e um visível enfraquecimento do presidente provisório Dmitry Medvedev, Putin se prepara para uma nova investida eleitoral em 2012 que promete ser sua grande prova de fogo.
A diferença é que, na direção contrária às investidas da diplomacia externa de seu governo, a onda global de protestos pró-democracia contagiou o povo russo e tem levado às ruas de Moscou e São Petersburgo quase que quinzenalmente um número que se aproxima dos cem mil manifestantes.
É assim que, ainda que sem um nome de peso, a oposição começa a desenhar um cenário preocupante para o Yedínaya Rossíya. O perigo, no entanto, reside nas possíveis reações de Putin. A comunidade internacional precisa, mais do que nunca, abrir seus olhos para não permitir que o governo russo repita em seu país as atrocidades que tolera em seus aliados.